Os números chocam: entre 2021 e 2023, o Brasil registrou morte violenta intencional de pelo menos 15.101 crianças e adolescentes, com média de 13,5 mortes por dia somente no ano passado. Jovens negros do sexo masculino perfazem a maior quantidade das vítimas. A faixa dos 15 a 19 anos é a mais vitimada. Garotos somam 92,4% das mortes, contra 7,6% das meninas. E 83,6% dos jovens mortos são da raça negra, contra 16% da raça branca.
Os dados são do Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil , um estudo recém-divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A categoria morte violenta intencional (MVI) reúne registros criminais de homicídio doloso, feminicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial em serviço ou não.
Os índices apontam uma epidemia de violência contra os jovens no país, especialmente os jovens negros, destacaram participantes de audiência pública na Comissão de Direitos Humanos (CDH) nesta quinta-feira (22). Proposto pelo presidente da CDH, senador Paulo Paim (PT-RS), o debate teve como tema “Assassinatos contra crianças e adolescentes no Brasil”.
Segundo o pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Cauê Martins, os números evidenciam uma realidade brutal e dimensionam o fracasso da sociedade brasileira, que banaliza a morte violenta intencional de 13 crianças por dia.
— É crucial entendermos as nuances da violência letal que atinge crianças e adolescentes no Brasil. A nossa análise mostra que, embora tenha havido uma redução de 7,7% no número geral de MVI entre crianças e adolescentes de 2022 para 2023, essa diminuição não se distribui de forma homogênea entre as diferentes faixas etárias. Enquanto as faixas de 10 a 14 anos e de 15 a 19 anos mostraram uma redução de 1,9% e 8,8%, respectivamente, as crianças mais novas, especialmente aquelas de 0 a 4 anos, sofreram um aumento preocupante de 19,2% no número de MVI — expôs Martins.
Essa realidade acende holofotes para a reflexão sobre o tipo de violência a que essas crianças e adolescentes estão expostos e onde ela ocorre, segundo o pesquisador.
— Por exemplo, crianças de até 9 anos frequentemente sofrem violência dentro de suas casas, perpetrada por pessoas conhecidas, muitas vezes familiares. Quando analisamos, por outro lado, as mortes de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos, o palco se desloca para a violência urbana, a arma de fogo passa a ser o principal instrumento utilizado nos crimes e o local das ocorrências de violência letal muda significativamente, saindo do ambiente doméstico em direção à via pública — disse Martins.
A pesquisa mostrou ainda que a interseccionalidade dos fatores agrava consideravelmente a vulnerabilidade de certos grupos sociais. Em 2023, a taxa de mortalidade entre crianças e adolescentes negros do sexo masculino foi 4,4 vezes maior do que a de crianças e adolescentes brancos do mesmo sexo.
— É fundamental que a gente dê o máximo de destaque a esse dado, uma crua evidência do racismo estrutural que permeia profundamente nossa sociedade e que se manifesta cruelmente na violência contra jovens negros — disse o pesquisador do Fórum.
Para o representante da Uneafro Movimento Negro, Douglas Belchior, educação e emprego são elementos que podem tirar o jovem negro da linha de tiro. Ele lembrou que dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2021 apontam que 7,8% dos meninos pardos e 11,3% dos meninos pretos acessam a escola com oito anos ou mais de idade. Ou seja, já chegam à escola tarde. No 5º ano do ensino fundamental, 15,1% dos meninos pardos e 21,2% dos meninos pretos já foram reprovados pelo menos uma vez. Quanto ao abandono escolar, no 5º ano do ensino fundamental, 7,7% dos meninos pardos e 9,6% dos meninos pretos já abandonaram a escola uma vez nessa trajetória.
— O quadro apresentado pelos dados educacionais do ensino fundamental expressa o fato inexorável de que a escola de educação básica brasileira é avessa aos meninos negros, que perfazem suas respectivas trajetórias educacionais, via de regra, de forma irregular. A trajetória educacional do jovem negro é irregular. Inclusive, as políticas de educação básica no atual governo dedicadas à permanência escolar, muito embora reconheçam as identidades quilombolas e indígenas como vulneráveis no ambiente escolar e, portanto, sujeitas de direitos da política, ignoram a condição do ser menino negro em ambientes urbanos violentos como condição de vulnerabilidade educacional — afirmou Belchior.
O papel do Estado, em especial das forças de segurança pública, na violência letal contra jovens também chama a atenção. A taxa de mortalidade por ações policiais em pessoas com mais de 19 anos, em 2023, foi de 2,8 por grupo de 100 mil pessoas, mas chegou a 6 entre os adolescentes de 15 a 19 anos, ou seja, mais do que o dobro.
O senador Paulo Paim afirmou que o Brasil precisa reagir com urgência e firmeza no combate à violência contra nossas crianças e adolescentes.
— Todos nós sabemos que a omissão é uma forma de cumplicidade. O Projeto de Lei (PL) 5.231/2020 , que trata da abordagem policial, apresentado por mim aqui no Senado, foi aprovado e está na Câmara dos Deputados há alguns anos. (...) O país não pode mais aceitar abordagens truculentas, racistas , discriminatórias, preconceituosas, que são um veemente ataque aos direitos humanos e à dignidade — disse Paim.
Para o diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, é indefensável que o Estado não tenha capacidade de produzir políticas públicas eficazes para evitar essas mortes.
— Havia um entendimento de que, havendo o investimento, com o país demonstrando capacidade de crescer economicamente, de combater as causas da desigualdade, da miséria, nós teríamos condições de automaticamente também reduzir esse cenário de violência e de mortalidade violenta. Há pelo menos dez anos, nós podemos dizer que esse argumento é insuficiente. Nós lamentamos, porque evidentemente nós sabemos o quanto é importante a preponderância dos investimentos envolvendo o enfrentamento às nossas desigualdades e à miséria, mas eles sozinhos não dão conta desse fenômeno — expôs Sampaio.
Também pelos números, é possível perceber a preponderância dessa violência em algumas regiões do país. Por isso, afirmou o diretor da Conectas, essas localidades deveriam ser objeto de política pública focalizada.
— Se o Estado tiver a capacidade de identificar as políticas públicas para os territórios mais violentos e mais específicos, vai ser mais eficaz. (...) Significa que aquele espaço público precisa ter a melhor escola, significa que aquele espaço público precisa ter o melhor acesso ao esporte, o melhor acesso à cultura, porque nós estamos falando da necessidade de enfrentar um fenômeno e de trazer alternativas sociais que sejam eficazes para aquele contexto de território — disse Sampaio.
Amapá, Bahia, Espírito Santo, Pernambuco e Ceará apresentam as piores taxas de MVI de crianças e adolescentes. Pelo menos 16 estados estão acima da taxa média nacional (igual ou superior a 9,2 por 100 mil) dessas mortes infantojuvenis.
Continuar investindo tradicionalmente em segurança pública com arma, viatura e equipamentos de enfrentamento não vai mudar essa realidade de mortes infantojuvenis, segundo o secretário nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da Segurança Pública, Marivaldo de Castro Pereira.
— Quando a gente precisa fazer enfrentamento, é porque a gente já perdeu. Isso é muito grave. E no Brasil a gente tem um histórico de seguir na linha de investimento, que infelizmente nos mantém nessa trajetória da população negra e pobre periférica pagando o preço da violência, pagando o preço da falta de segurança pública, seja da perspectiva da violência institucional, seja da perspectiva da violência privada. No resultado final, será sempre um corpo negro tombado em alguma esquina, e ninguém vai responder por isso, infelizmente — afirmou o secretário.
A aposta é, então, na prevenção à violência, segundo Pereira. Entre as iniciativas governamentais, estão os Centros Comunitários pela Vida (Convive, que deverão ser implantados em 30 cidades em regiões metropolitanas de 24 estados) e a construção de equipamentos em áreas com altos índices de violência para a prática de esporte, lazer e educação dos jovens. Segundo o governo, os centros serão equipamentos públicos de prevenção à violência e redução da criminalidade, com oferta de serviços assistenciais e de cidadania. Também estão sendo financiados cursinhos populares.
Diretora de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos, Marta Volpi também salientou que não bastam ações isoladas. Em relação às práticas que possam reduzir a violência, em especial os assassinatos dos adolescentes, a diretora destacou os programas de gestão para resultados na segurança pública.
— A gente precisa melhorar, de fato, as investigações com resultados, com o apontamento dos culpados, com a punibilidade dos reais atores desses crimes. Temos que melhorar os programas de gestão do uso da força e redução da letalidade policial, onde entram as câmeras (acopladas aos uniformes dos policiais), mas não só elas. A gente precisa de um modelo integrado de controle de armas, uma vez que, se aumenta a circulação de armas no país, aumentam as mortes de crianças e adolescentes, fatalmente — enfatizou a diretora do Ministério dos Direitos Humanos.
Segundo a diretora, o governo tem investido também na ampliação do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte.
— Lugar de criança é no Orçamento público. Então, a gente precisa, de fato, fazer com que crianças e adolescentes sejam a prioridade absoluta também na destinação dos nossos recursos. Políticas sem recursos para a implementação não passam de boas cartas de intenções. Então, a gente precisa fazer com que esses direitos sejam, de fato, entregues para as pessoas, em especial para as crianças e os adolescentes nos seus territórios — expôs Marta.
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